Desaba a tempestade

Depois do grande choque provocado pelas declarações de Téca, Vila Nova percebeu que havia chegado a sua vez. Com o semblante revelando profunda tristeza, como se o que estava para dizer fosse mais dolorido que o próprio soco que havia tomado de Lukas, perguntou aos demais:

- Por onde querem que eu comece, por Lúcia, por Uriel?
- Por que você está aqui? O que você fez para estar nesse cruzeiro? Perguntou Cíntia.
- Bom, então começarei por Lúcia... Eu a conheci na faculdade. Éramos da mesma sala. Lúcia sempre foi uma linda mulher e sabia usar sua beleza para causar impacto e conseguir o que quisesse. No terceiro ano, começamos a namorar. Foi através dela que conheci Rachel, sua amiga. Nos tornamos amigos também.
- Por que vocês nunca demonstraram essa amizade aqui? Luiz quis saber.
- Porque, até agora, não sabia qual era o motivo de estar nesse navio. Quando vi Rachel, na manhã de ontem, comecei a desconfiar que seu chefe tivesse descoberto que ela havia me pedido ajuda para publicar suas falcatruas, mas como não tinha certeza disso, julguei que, até que as coisas se esclarecessem mais, seria melhor ignorar que eu a conhecia. Disse, olhando para a secretária, que por sua vez falou:
- Pelas mesmas razões, estava me sentindo culpada pela sua presença aqui. Por isso, também me mantive em silêncio quanto ao fato de nos conhecermos.
- E Uriel? De onde vocês se conhecem? Outra vez Cíntia.
- Conheci Uriel na adolescência. Seus avós maternos moravam perto da minha casa. Nessa época, ele já se denominava com anjo Uriel. Falava que não tinha razões para gostar do seu nome. Possivelmente, era pelo grande ressentimento que dizia sentir pelo pai, mas como evitava tocar no assunto, não insistia. Para mim, ele sempre foi o meu bom amigo Uriel. Agora, entendo seus motivos... Mas aí seus avós morreram, na queda de um avião e ele sumiu. Desde então, perdemos o contato.
- Continue seu relato sobre Lúcia, Vila Nova. Pediu Luiz
- Ok. Cláudio Respirou fundo e prosseguiu. – Quando estava no último ano da faculdade, conheci um jornalista. Nos tornamos amigos, rapidamente. Um dia, ele me fez uma proposta. Através de suas fontes, soube de um forte esquema de fraudes contra a ordem tributária, envolvendo um grupo de empresários. Contudo, para que pudesse investigar a fundo, precisaria levantar uma grana, que serviria para comprar informações e equipamentos. Se eu conseguisse o dinheiro, ele dividira os louros desse que seria o grande furo de reportagem comigo.
- Você topou? Perguntou Cíntia.
- Sim, topei. Consegui o dinheiro com Lúcia. Como achava o negócio meio arriscado, menti para ela sobre como a grana seria gasta... Enquanto o caso era investigado, eu escrevia os textos, sem que pudesse assiná-los, já que não era formado. Quando as reportagens começaram a ser veiculadas no jornal, os envolvidos passaram a sofrer com a fúria da mídia. Nesse período, surgiram as brigas entre mim e Lúcia. Por algum motivo, que até então desconhecia, ela passou a se exasperar com as publicações, dizendo que tudo não passava de mentiras e insinuações. De minha parte, por pura vaidade, mesmo achando que poderia ser mentira, defendia os textos veementemente, afinal, eram meus. Eu os escrevia... Daí, as brigas chegaram ao auge e, então, ela resolveu terminar nosso namoro. Pouco tempo depois, soube que tinha ido embora do país.
- Nossa, que mulher temperamental! Terminar um namoro só por causa de divergências sobre matérias de jornal? Exclamou Téca, com um sorriso irônico.
- Não foi por causa das divergências... À medida que as reportagens vinham à lume, nomes de supostos envolvidos apareciam. Um deles, cuja honra fora brutalmente atacada pela opinião pública, não suportou a vergonha e se matou... Quando isso aconteceu, percebi que Lúcia poderia mesmo estar com a verdade. Assim, dei uma prensa nesse jornalista, que me confessou que todo o esquema de fraudes era uma farsa muito bem engendrada.

Visivelmente emocionado, Cláudio continuou:

- Percebem? Fui leviano e inconseqüente. Aceitei fazer um acordo com um sujeito, apenas por querer um lugar ao sol, quando saísse da faculdade. Me esqueci de tudo quanto havia aprendido sobre ética profissional.
- E o que isso tem a ver com a tal Lúcia? Perguntou Luiz.
- Apesar de ficarmos juntos por quase dois anos, nunca tive a oportunidade de conhecer o seu pai. Até onde eu sabia, ele e sua mãe eram divorciados. Como ele era conhecido pelo outro sobrenome, nunca liguei os fatos. Nessa madrugada, porém, quando a encontrei aqui, foi que a ficha caiu.
- Peraí, ô jornalista. Você está querendo dizer que... Putz! O tal homem que se matou era o pai de Lúcia? Falou Téca, boquiaberta. – Resumindo: você pediu dinheiro à moça para acabar com a vida do pai dela?!! ... Eh, desse jeito, até eu iria querer me vingar de você, querido.

Vila Nova estava abatido demais para reagir à tamanha ironia. Calou-se, apenas. Um silêncio tomou conta do ambiente, até que Luiz ponderou:

- Terminemos essa sessão de verdades. Será melhor nos retirarmos e voltarmos na hora do almoço. Precisamos, todos, respirar um pouco de paz.

A sugestão de Luiz foi acatada. Enquanto Téca se encaminhava para o convés, sozinha, e os demais iam saindo daquele ambiente, Vila Nova, se aproximando de Uriel, que ainda se encontrava arrasado pela dureza de Rachel, disse ao amigo, sem que os outros ouvissem:

- Preciso falar com você. Confie em mim, tudo vai se resolver. Dê um tempo a Rachel. Mais cedo ou mais tarde, ela compreenderá suas razões. Entretanto, se algo não for feito contra o Aranha, ninguém sairá vivo daqui. Daí, de nada adiantará vocês se entenderem...

A conversa foi longa. O jornalista deixou o hacker e foi conversar com a secretária. Saindo de lá, voltou para o seu quarto. O corpo de Isadora havia desaparecido. Estranhando o fato, Vila Nova resolveu vasculhar a cabine, quando descobriu o furto do livro que incriminava Lukas. Meticuloso, Cláudio notou alguns fios ruivos caídos no chão alvo do banheiro. Saiu desesperado do seu quarto em direção à cabine de Téca. Sem mesmo bater, entrou no ambiente, cuja porta não havia sido trancada.

Não se preocupou em ser flagrado pela ruiva, procurando por todo quarto. De repente, notou uma caixa usada para acondicionar objetos artesanais. Suspendeu a tampa e descobriu o que Téca tanto escondia: Frascos de venenos. O livro também estava lá. Além disso, havia uma agenda com anotações sobre o poder do líquido contido nos pequenos frascos. O jornalista ficou perplexo com o que lia. Tudo estava muito bem organizado e etiquetado.

Nesse instante, uma idéia sombria passou pela cabeça de Vila Nova, ganhando vida e forma. Cláudio pegou o livro e um dos vidrinhos de veneno, deixando a caixa aberta sobre a cama. Queria evidenciar o sumiço da arma contra Lukas, para que a ruiva não desse conta do furto de um dos frascos.

Saindo da cabine de Téca, voltou ao seu quarto. Havia um bloco e uma caneta numa das gavetas do criado. Escreveu uma carta de despedida, endereçada aos dois amigos: Uriel e Rachel, deixando-a sobre o móvel. Rumou em direção ao quarto da secretária, depois ao do outro, onde deixou o livro. Permaneceu por lá aproximadamente meia hora.

Os dois saíram. Uriel seguiu por um caminho, transtornado, enquanto Vila Nova regressava a sua cabine, de semblante carregado. No céu, nuvens negras anunciavam uma tempestade. Ficou cerca de quarenta minutos sentado na cama, olhando para o frasco em sua mão, como se estivesse tomando coragem. De repente, mirou um lugar onde achava que havia uma câmera escondida. Estava decidido. Então, disse:

- Você me perguntou em seu bilhete se eu achava mesmo que podia das cartas por aqui, não foi? ... Eu vou lhe responder com outra pergunta: - Acha mesmo que eu estava blefando?

O jornalista abriu o pequeno frasco, mostrou-o à câmera, respirou fundo, sorveu todo o conteúdo e voltou a falar, com os olhos fixados no mesmo ponto, enquanto a tempestade anunciada pelas nuvens desabava lá fora.

- Saio da vida para te ferrar na história!